quinta-feira, 6 de junho de 2013

O passageiro do trem...





             Quase todas as manhãs ele passava por aquela estação. Seu jeito leve de andar chamava minha atenção. Pude observar, pela pequena fresta do chapéu, que a luz que carrega nos olhos era capaz de iluminar aquela pacata vila do interior. Sentava sempre no último vagão, aquele que antecedia o carro de cargas. Tinha um sorriso suave e misterioso. Só conseguia percebê-lo quando levantava a cabeça do seu bloco de anotações e sorria, por algum motivo que eu desconhecia. Passei a chegar mais cedo para iniciar minhas atividades no armazém “Secos e Molhados”. O trem saía às onze da manhã e às dez horas eu já estava sentada no banco de madeira da pequena estação. Na parede, o cartaz anunciava que o cinema falado tinha chegado na grande cidade. “A corrida do Ouro” era o tão esperado filme que iria atrair, não só olhares das pessoas da capital, como também dos vilarejos vizinhos. Eu carregava comigo alguns pedaços de pão para alimentar os passarinhos que ficavam à margem dos trilhos, minutos antes do trem apitar. Às vezes, eu o via escrevendo no estreito bloco que tirava do bolso do terno preto. Eu não sabia que tinha afinidade com as letras, apenas ouvia meu pai recitar seus versos no teatro local e encantava-me com o malabarismo que fazia com as palavras. Certo dia, peguei o papel que embrulhava as migalhas de pão e escrevi um poema sobre as trilhas da vida. Quando o trem já estava em movimento , levantei o bilhete amassado e vi, através do vidro empoeirado da janela do trem, que ele olhava-me de soslaio sob a aba do chapéu. Com um sorriso tímido, de canto de boca, ele tentava decifrar aquelas mal traçadas linhas...
          Por onze dias, a janela do trem passou vazia para minha tristeza. Meus dias tornaram-se cinzentos. E era difícil encontrar algo que fizesse minha alma amanhecer e florescer na primavera que se aproximava. Resolvi não mais sentar no banco da estação e evitava levantar a cabeça para não enxergar os trilhos que tanto me lembravam aquele olhar que, um dia, me fez sonhar... Numa manhã, onde as flores já exibiam seu perfume no ar, resolvi visitar o local que tanto me fez doer... Para minha surpresa, pude ver aquela luz que saía daqueles olhos tão negros, mas que era capaz de iluminar a escuridão de minha alma. Tirou do bolso o bloco. E na miúda folha, quase em branco, as palavras em letras maiúsculas e bem grandes: EU TAMBÉM.      
          Aquele foi o primeiro dia do resto das nossas vidas. Foram muitos anos viajando no mesmo vagão. Quando queríamos relembrar os bons momentos, pegávamos as fotografias em preto e branco tiradas nos trilhos daquela estação. Um carro, cuja placa datava 1920, marcava o início de uma vida feita de encanto, sonhos e sorrisos. Eu passei pelo tempo, mas o passageiro do trem permaneceu uma vida em mim...
         Hoje, ele terá que seguir sozinho. Tive que descer na estação “PARAÍSO”. Deixei meus versos para colorir os dias dele. Sei que ele sorrirá ao ver , em todas as folhas, o número 11. Tínhamos afinidade com esse número. Talvez por lembrar os trilhos, o caminho que devemos seguir, um ao lado do outro e por recordar a eternidade onde, certamente, nós vamos nos reencontrar...